Miragem – Marina Porteclis
Malabares – Capítulo 1
O sol de meio-dia arrancava do asfalto imagens disformes, verdadeiras miragens. Mergulhando o olhar no chão quente e fumegante, em uma dentre tantas ruas enladeiradas, a observadora via a cidade emergir distorcida. Tal qual mágica, em instantes, prédios, carros, pontes, árvores, fontes, céu, cinza, tudo se contorcia por sobre o caminho. O sinal se mantinha vermelho, enquanto o olhar prosseguia perdido até que algo, semelhante às miragens, lhe chamou a atenção.
Uma jovem de beleza exuberante se postou defronte o carro. O corpo atlético, bronzeado, vestia roupas leves e simples. Uma calça solta e colorida, de cintura baixa, permitia entrever o abdome definido. A camiseta regata de cor clara deixava à mostra os ombros bem feitos, desenhados, as costas de musculatura firme, os braços torneados, mas de contornos bastante femininos. Cabelos castanhos claros, queimados pelo sol, desciam em ondas até quase a cintura, enquanto uma faixa na testa protegia a fronte altiva. Com os olhos encobertos por óculos de sol, a bela aparição arremessava malabares para o céu azul e os apanhava de forma acrobática, como se dançasse balé em plena rua.
Tomada de encantamento, Aída se demorou mais do que o devido a contemplar a malabarista. O sinal já estava verde, mas simplesmente não conseguia acelerar o carro. Atravessava aquela avenida todos os dias e nunca havia visto aquela criatura tão peculiar. Temeu nunca mais encontrá-la e, bem por isto, ignorou por alguns segundos as buzinadas que recebeu logo atrás de si.
Com um sorriso absurdamente bonito, a jovem se aproximou do carro, fazendo a condutora imediatamente baixar os vidros. Tinha a boca farta, mais do que atrativa, de uma sedução acintosa.
A vida era mesmo engraçada. Na cidade do Recife, Aída não costumava abrir as janelas do carro blindado por nada. A violência não era de brincadeira, mesmo com o sol a pino. Diante da moça, todavia, não pestanejou. Quis e deu acesso a ela sem pensar. Resistir lhe foi simplesmente impossível.
Os lábios bem feitos mantiveram o riso enquanto fitava a motorista. Os dentes brancos e perfeitos pareciam esculpidos. Frente a frente com a malabarista, Aída se sentiu estranhamente tocada. A moça não tinha apenas beleza e sensualidade. Havia um quê de arrebatador naquele semblante e certamente naquele espírito. Ela respirava e transpirava liberdade. Era isso.
A jovem parecia livre de todas as amarras e convenções. Livre para a vida e longe das molduras. Apesar de se postar no meio da rua, cercada de carros e asfalto escaldante, caminhava tranquila como se pisasse em nuvens. E, com a mesma tranquilidade, lhe sorria, como se fossem grandes conhecidas. O rosto anguloso se fez ainda mais bonito de perto e a face, sem máscaras, mostrou-se sincera, inteira, quase despida, não fossem os óculos escuros.
Aída, entre atônita e encantada, procurou na carteira uma cédula que pudesse oferecer, mas nada parecia valioso o suficiente para pagar aquele momento, aquele encontro suspenso no vento. As árvores dançavam à beira do rio e Aída teve vontade de sair do carro e puxar a moça para andarem de mãos dadas, esquecendo todos os seus compromissos. Desejou mais do que tudo sentar ao seu lado para que pudessem conversar, se conhecer. Queria descobrir o que estava por trás daquela miragem, ainda que tal desejo não fizesse o menor sentido.
Logo Aída, que tinha fama de ser extremamente racional e antiquada, se via agora, daquela forma, perdidamente enlevada pela desconhecida. Foi quando outro desejo a tomou: precisava ver os olhos da moça e esta, como se lesse seus pensamentos, subitamente ergueu os óculos, prendendo os cabelos com eles, como se fossem uma tiara.
Aquele olhar jamais seria esquecido por Aída e a expectadora soube imediatamente disto. Os olhos da jovem eram verdes e intensos, seguros e doces, profundos e inquisitivos. Um misto de impressões emergia daquela íris, onde dormitavam submersos traços minúsculos e negros, todos capazes de intrigar e enfeitiçar ainda mais a motorista.
Entre o espaço mesquinho do vidro, Aída estendeu uma cédula de vinte reais e, pela primeira vez, ouviu a voz da miragem que, mansamente e com sotaque sulista, lhe disse:
– Obrigada.
Sem se conter, Aída comentou, olhando fixamente nos olhos verdes que a fitavam:
– Linda a sua arte.
Não era preciso nada além de ouvir a frase para perceber que Aída não se referia apenas aos malabares, mas sim à malabarista. A artista, porém, não pôde escutar. Estava com fones nos ouvidos. Mozart tocava alto enquanto Aída tentava conquista-la. E assim, alheia ao que despertara, a jovem deu as costas e partiu, com os quadris bem feitos e o andar de quem pisa em terreno próprio.
Tudo isso se passou em segundos que pareceram se estender no tempo. Nesse mesmo interstício, Aída fez uma volta ao mundo, revirando sua própria vida.
Liberdade. Palavra forte e tão desejada. Era tudo o que Aída havia almejado durante muitos anos. Lembrou-se de quando morava com os pais e tudo o que queria era não ter horários para chegar em casa. Jurara para si mesma que, um dia, quando morasse sozinha e pagasse suas contas, jamais colocaria um relógio no pulso. A vida e suas ironias.
Agora era rica, uma grande empresária, morava num luxuoso apartamento na Avenida Beira Rio, mas, ao contrário do que havia prometido, não se livrara dos relógios. Ao contrário: colecionava relógios, sempre os mais caros. E por falar neles, estava absolutamente atrasada!
Arrancou com seu Audi preto rumo aos seus inúmeros e inadiáveis compromissos. O dia estava apenas começando e já se sentia cansada. Antes de virar a esquina, porém, olhou pelo retrovisor e despediu-se da mulher-miragem. Aquela sim, ao contrário de si, certamente era capaz de viver, de modo pleno, a tão clamada liberdade.
Continua em … Malabares