Estranhos na névoa – Morena Borges
As aparências enganam e, às vezes, esse engano pode ser fatal.
Era meados de junho, inverno no Rio Grande do Sul. Alice saíra de Porto Alegre pouco antes do anoitecer, com destino a Gramado, na Serra. Ia passar o m de semana na casa da família do namorado, Gabriel. O rapaz, preocupado, insistira que seria melhor ela ir na manhã seguinte. Pegar a estrada àquela hora, ainda mais com aquele tempo, não era certo. Ela concordou com ele de imediato, mas pensou melhor depois. Isso a faria perder boa parte da manhã de sábado na estrada. Mudou de ideia. Já havia feito aquele trajeto sozinha uma vez no m da tarde, não haveria problemas. Ao chegar do trabalho, botou roupas mais quentes do que as que usava, casaco de lã, uma manta enrolada no pescoço e luvas. Pegou a mochila, jogou no banco de trás do carro e saiu do bairro Auxiliadora, onde morava. Agora o relógio marcava 17 e 30 e a meteorologia avisava sobre aumento do frio e possível geada em partes da serra, mas ela dirigia tranquila pela BR 116. Seguiria por aquela rodovia até Nova Petrópolis, de lá pegaria a ERS 235. Muito fácil.
Ligou o som e sintonizou uma rádio local de música gaúcha. Havia umas antigas que a faziam se lembrar de quando era criança e viajava com seu pai. Ele costumava cantar com aquela voz grossa e serena as canções tradicionais. Entre uma música e outra um noticiário falava sobre casos de assalto e ataques a mulheres dirigindo sozinhas num determinado trecho entre Nova Petrópolis e Gramado, por onde ela ia passar. Alice vira aquilo em jornais durante a semana. Mas não dera atenção. Aqueles noticiários só mostravam desgraça e ficar vendo isso atraía coisas ruins. Se as pessoas fossem se basear por aquelas reportagens, nem sairiam de casa ou sequer viveriam. Por isso, ela mudava de canal na hora dos noticiários. Isso nas raras vezes em que via TV aberta, nem tinha tempo e quando sentava-se diante da televisão, era para assistir alguma série na Netflix ou vídeos no Youtube.
Todas as vítimas foram encontradas degoladas na mata e seus carros abandonados a poucos metros. Os crimes têm características parecidas e o caso está sendo chamado pela polícia de O maníaco da ERS 235, dizia o repórter.
Sem alarde algum, Alice relanceou um olhar para as nuvens cinzentas que preenchiam o céu e a névoa que se adensava, formando sombras entre as árvores à margem da estrada.
— Maníaco da ERS 235, fala sério — pegou uma bala e pôs na boca. Voltou a atenção para o caminho vazio à sua frente. Rodando a mais de 100 por hora no seu HB20, sentia-se protegida. Dali a pouco chegaria a seu destino.
Uma vaneira contagiante aliviou o clima da notícia. Ela tamborilou os dedos no volante, balançando a cabeça ao som da música.
Os minutos foram passando, curvas sendo vencidas em meio à paisagem úmida de inverno.
Sem que Alice se desse conta, como acontece no crepúsculo, a pouca luz do dia foi se desvanecendo e a neblina se avolumando a cada avanço do carro pela rodovia deserta. Aliás, fazia uma boa meia hora que ela não cruzava com nenhum outro veículo. Aquilo parecia estranho. A estrada vazia de repente trouxe uma sensação de solidão incômoda. Até certo ponto do percurso, mantivera-se despreocupada. Agora, uma ansiedade excessiva a afligia. Mas ela ainda não queria admitir que zera a coisa errada ao confiar que a viagem seria tranquila. Ligou os faróis. Um chuvisco no brilhava na luz, disperso no ar. Ela dobrou numa curva sinuosa e, a cada metro percorrido, conseguia enxergar menos a estrada, progressivamente submersa na neblina. Por isso, só quando se aproximou bem, ela vislumbrou a figura recortada na brancura do nevoeiro. Uma pessoa na beira da estrada. Aparentemente pedindo carona. Alice diminuiu a velocidade, sondando, antes de decidir parar. Seus faróis iluminaram uma moça. Esperando ao lado de uma moto, ela estendia a mão.
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